sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O terno Azul... (Crônica)



Homenagem póstuma ao poeta e médico das letras Antonio Roberto Fernandes, falecido em 20 de novembro de 2008


Uma tarde fria. Lá fora a chuva tocava a face da estátua deitada ao chão. De pé eu olhava fixamente meu corpo que jazia inerte no meio do salão. Não gostei. A barba por fazer deixava-me com aparência de mais idade. Não que isso me importava, pois sempre dei valor a vida que vivi muito mais que a vida que se extinguia ali. O caixão de madeira escura muito bem envernizada tinha aparência de minha última morada. E as alças? As alças davam um ar mais clássico ao evento assistido por muita gente.
Mas, havia algo que me incomodava. Não sei bem o que era, mas não me agradava. Talvez fosse a gravata! Sim, a gravata, ela não combinava. Não combinava a gravata, não combinava o terno azul, não combinava nada. Será que as pessoas não percebem que quando morremos somos o protagonista, o ator principal, o trovador vencedor do grande concurso e, que não podemos fazer feio? A verdade era que eu gostava muito mais da minha camisa listrada, do meu paletó e do meu inseparável suspensório. Esse sim minha marca registrada.
Lá fora a chuva parece não querer dar trégua. Aqui dentro as lágrimas umedecem os lenços saudosos e a beira do meu esquife. O lugar escolhido foi o Palácio da Cultura, onde eu e meus amigos comparsas transgredíamos em prosa e verso todas as formas de poetizar. Entre cafés e biscoitos falava dos pratos de minha avó, das águas correntes e das covinhas de minhas musas.
Das Heloísas eu era Abelardo, das Helenas o Teseu, das Capitu o secreto Escobar, das belas Penélopes era o Ulisses. Até das Olívias versadas por Veríssimo eu era o Eugênio a olhar os lírios do campo. Se todos eles tiveram suas inspirações, também eu tenho aqui minhas musas. Se noite fosse agora, minha vontade era de pegar o celular e a alguém indagar: Já vistes a lua como está linda esta noite? Saberia sua resposta: já escreveste meu poema? Quem não gosta de receber um elogio, um galanteio?
Recebi muitas homenagens. Nunca imaginei tantas coroas de flores. Na verdade achei que demoraria um tanto mais para recebê-las, mas, fazer o que? É a vida, ou melhor é a morte. Quanta gente chorosa! Quantas moças saudosas! Mas, choraram também os amigos mais sinceros.
Nasci no mato, mas no mato não me criei! Foi lá para bandas de São Fidélis, cidade poema que de meu pai aprendi as primeiras garatujas. Primogênito de oito irmãos (senti a falta de alguns neste dia...) quis ser doutor das medicinas, mas, foi na casa bancária que contando o dinheiro alheio ajudei a criar meus irmãos. Mas fui e sou um homem de sorte, pois aprendi a ver o homem por dentro e por fora e tornei-me assim poeta.
Entre choros, velas e versos declamados a tarde vai longe. Não demoras fecham o meu caixão. Mas confesso continuo incomodado com o terno azul. Não faz meu gênero. Não tem a minha marca. Onde esta meu inseparável suspensório? Na bicicleta da vida pedalei tanto, meu Deus, mas no melhor da descida furaram-se os dois pneus!...
Dizem os espiritualistas de plantão que quando viemos ao mundo, viemos com uma missão e, quando partimos deixamos nossa criação. Parece brincadeira, de mau gosto, mas brincadeira, pois no dia de minha partida levaram comigo minha expiação! Não é que retiraram do palácio as estátuas da abolição!
Mas, tudo isso não mais importa, eu continuo aqui de pé a olhar com serenidade a serenidade me levar embora. E por um instante, apenas por um instante quando olhava fixamente o terno azul, eu imaginei que eu era ele e, que ele era eu e, senti falta do suspensório.

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